DO POPULAR AO ARMORIAL
" (...) Em
primeiro lugar, o Movimento Armorial situa-se num quadro regional, o Nordeste,
espaço geográfico, histórico e mítico, comum aos cantadores e aos armo
rialistas na afirmação, sempre renovada, de sua "nordestinidade".
Essa presença da região continua sendo um elemento fundamental da criação
popular que o Movimento Armorial adota, numa dimensão poética pessoal mais do
que sociológica, sem se tornar, no entanto, arauto de um regionalismo
militante.
A
maior originalidade da literatura popular nordestina reside, sem dúvida, no
intercâmbio estreito e permanente que estabelece entre expressão oral e
escritura. tradicionalmente diferenciada, a escritura (do folheto) não exclui a
voz (da cantoria, do romance, do conto): completa-a e renova-a, desempenhando o
papel de arquivo da improvisação e do momentâneo. tal escritura não marginaliza
a dimensão oral; foi escolhida como objeto preferencial de estudo por ser
relativamente estável, muito embora o texto do folheto esteja também submetido
a processos de variação, reescritura e atualização. Em compensação, a cantoria,
poesia do instante e por essência fugitiva, institucionalizou-se com um
conjunto de regras e códigos poéticos, genéricos e teatrais, permitindo, assim,
ao cantador improvisar livremente sem prejuízo da coerência e inteligibilidade
da mensagem. O poeta armorial recorre a essa ambivalência oral-escrita para
estabelecer os fundamentos de uma nova arte poética. É na escritura do folheto
que o escritor ou artista armorial se apoia para ancorar a recriação ou
reescritura, como modo privilegiado da criação armorial, seguindo o modelo da
poesia popular e de suas incessantes retomadas de temas e formas. Essa
reescritura resulta de um duplo movimento: se a atração da escritura armorial
sobre o canto popular parece predominante, a oralidade penetra profundamente
esta escritura e a "perverte" ao convertê-la a leis e modos de
criação não são seus, que são oriundos de uma outra poética e que contribuem,
com certeza, para o caráter ambivalente e às vezes ambíguo, da obra armorial.
Além
do texto, oral ou escrito, a literatura de folheto oferece um modelo de
integração de formas artísticas que a cultura erudita costuma distinguir com
cuidado: palavra e imagem estão em contato direto numa "estrutura mais ou
menos complexa de visualidade emblemática no limite do ideograma"(Zumthor,
1980,p.231). A essa dualidade acrescenta-se a música, já implicada na oralidade
poética, mas enriquecida pelo aporte instrumental e cantado das diferentes
manifestações musicais do folclore brasileiro.
Esse
encontro entre artes e artistas justifica a criação de um movimento que permite
os contatos, os intercâmbios entre pessoas e obras, e que os integra até
torná-los um dos fundamentos da criação armorial. facilitando essa aproximação
das artes, Ariano Suassuna visa promover formas artísticas novas que traduzam
essa expansão do imaginário além das fronteiras estabelecidas e artificialmente
mantidas pela cultura letrada.
Entre
popular e letrado, escrito e oral, entre literatura, música, teatro e artes
plásticas, Ariano Suassuna criou o movimento Armorial na encruzilhada dos
caminhos existentes e das vias por percorrer. Propõe-lhe um ambicioso programa
de pesquisa pioneira cujo objetivo reconhecido é participar da elaboração de
uma cultura brasileira, em que o caráter nacional e regional se universalizaria
graças ao gênio de seus criadores. tal programa, cuja amplitude atraiu e também
amedrontou jovens artistas em busca de uma expressão pessoal, não procurou
chegar a um termo, a um apogeu. Sua existência e o estudo de suas realizações,
nos diferentes campos artísticos em que se manifestou, permitem, contudo,
atestar a realidade do Movimento Armorial e sua importância na cultura
brasileira."
(Santos,
Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular: Araino Suassuna e o
movimento armorial. -2º edição. rev. - Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2009.)
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