domingo, 26 de maio de 2013


 DO POPULAR AO ARMORIAL

" (...)  Em primeiro lugar, o Movimento Armorial situa-se num quadro regional, o Nordeste, espaço geográfico, histórico e mítico, comum aos cantadores e aos armo rialistas na afirmação, sempre renovada, de sua "nordestinidade". Essa presença da região continua sendo um elemento fundamental da criação popular que o Movimento Armorial adota, numa dimensão poética pessoal mais do que sociológica, sem se tornar, no entanto, arauto de um regionalismo militante.
 A maior originalidade da literatura popular nordestina reside, sem dúvida, no intercâmbio estreito e permanente que estabelece entre expressão oral e escritura. tradicionalmente diferenciada, a escritura (do folheto) não exclui a voz (da cantoria, do romance, do conto): completa-a e renova-a, desempenhando o papel de arquivo da improvisação e do momentâneo. tal escritura não marginaliza a dimensão oral; foi escolhida como objeto preferencial de estudo por ser relativamente estável, muito embora o texto do folheto esteja também submetido a processos de variação, reescritura e atualização. Em compensação, a cantoria, poesia do instante e por essência fugitiva, institucionalizou-se com um conjunto de regras e códigos poéticos, genéricos e teatrais, permitindo, assim, ao cantador improvisar livremente sem prejuízo da coerência e inteligibilidade da mensagem. O poeta armorial recorre a essa ambivalência oral-escrita para estabelecer os fundamentos de uma nova arte poética. É na escritura do folheto que o escritor ou artista armorial se apoia para ancorar a recriação ou reescritura, como modo privilegiado da criação armorial, seguindo o modelo da poesia popular e de suas incessantes retomadas de temas e formas. Essa reescritura resulta de um duplo movimento: se a atração da escritura armorial sobre o canto popular parece predominante, a oralidade penetra profundamente esta escritura e a "perverte" ao convertê-la a leis e modos de criação não são seus, que são oriundos  de uma outra poética e que contribuem, com certeza, para o caráter ambivalente e às vezes ambíguo, da obra armorial.
 Além do texto, oral ou escrito, a literatura de folheto oferece um modelo de integração de formas artísticas que a cultura erudita costuma distinguir com cuidado: palavra e imagem estão em contato direto numa "estrutura mais ou menos complexa de visualidade emblemática no limite do ideograma"(Zumthor, 1980,p.231). A essa dualidade acrescenta-se a música, já implicada na oralidade poética, mas enriquecida pelo aporte instrumental e cantado das diferentes manifestações musicais do folclore brasileiro.
 Esse encontro entre artes e artistas justifica a criação de um movimento que permite os contatos, os intercâmbios entre pessoas e obras, e que os integra até torná-los um dos fundamentos da criação armorial. facilitando essa aproximação das artes, Ariano Suassuna visa promover formas artísticas novas que traduzam essa expansão do imaginário além das fronteiras estabelecidas e artificialmente mantidas pela cultura letrada.
 Entre popular e letrado, escrito e oral, entre literatura, música, teatro e artes plásticas, Ariano Suassuna criou o movimento Armorial na encruzilhada dos caminhos existentes e das vias por percorrer. Propõe-lhe um ambicioso programa de pesquisa pioneira cujo objetivo reconhecido é participar da elaboração de uma cultura brasileira, em que o caráter nacional e regional se universalizaria graças ao gênio de seus criadores. tal programa, cuja amplitude atraiu e também amedrontou jovens artistas em busca de uma expressão pessoal, não procurou chegar a um termo, a um apogeu. Sua existência e o estudo de suas realizações, nos diferentes campos artísticos em que se manifestou, permitem, contudo, atestar a realidade do Movimento Armorial e sua importância na cultura brasileira."


(Santos, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular: Araino Suassuna e o movimento armorial. -2º edição. rev. - Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2009.)

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